quinta-feira, 21 de abril de 2011

O garoto selvagem e a pesquisa com crianças



O garoto selvagem (François Truffaut, França, 1969) é um filme que costuma ser muito visto e debatido no contexto da educação. Aliás, o uso do cinema na educação é histórico e possui diversas possibilidades. Nesse caso, parece um lugar comum para “ilustrar” com simplicidade e beleza a complexidade da relação natureza-cultura, mais especificamente o papel da linguagem, da comunicação e da educação no constituir-se humano. Mas além disso, o filme tornou-se um clássico e também por isso merece ser assistido num curso que trata da formação de professores.

Quando assistimos ao filme no curso de Pedagogia, inicialmente contextualizei a obra: baseado em fatos reais, o filme conta a história de Victor, um menino encontrado na floresta de Avignon, por volta de 1798, sem saber falar, andar e se comunicar é levado para a cidade aos cuidados de  dr. Itard que investiga as possibilidades de educar uma criança privada do convívio humano. Situando o enredo do filme apenas para instigar a curiosidade, pontuei algumas considerações sobre o diretor: Truffaut representa o cinema de autor, teve uma vida considerada difícil e em sua produção, ao lado deste filme, de Os incompreendidos, e de Farenheit 451, desenvolveu uma espécie de cinema autobiográfico com temas recorrentes que expressam sua visão de infância, das mulheres, e da escrita. Também destaquei alguns elementos da crítica e potenciais para a discussão: o mito do bom selvagem e a filosofia iluminista, a relação natureza x cultura, linguagem e educação.  

Interessante observar a reação e os comentários das estudantes enquanto assistiam ao filme - com observações que iam desde questões da narrativa fílmica até aspectos  estilísticos e de continuidade – para depois retomá-los na discussão. Aliás, entre as primeiras impressões das estudantes, a história de vida, o percurso e os problemas de aprendizagem bem como o papel do afeto na educação de Victor chamaram a atenção.  

Como um dos objetivos de assistir ao filme em sala de aula era também historicizar as possibilidades da pesquisa com crianças (do enfoque da psicologia experimental até outras abordagens de pesquisa), destacamos alguns aspectos do nosso olhar de espectador como testemunhas e leitores do diário de dr. Itard e da forma como o diretor relaciona  a escrita do diário íntimo com a observação científica. 

Tal como o filme oscila entre opostos (crença na ciência e razão que explica x ceticismo no confronto com o mundo da civilização) nossa discussão foi instigada por ritmos e planos fílmicos e por questões trazidas com a leitura de outros textos: “Infância, pesquisa e relatos orais”, de Z. B. F Demartini e “A pesquisa com crianças e mídia na escola: questões éticas e teórico-metodológicas”, de minha autoria. Com isso, a provocação era a respeito dos estilos educativos verdadeiramente formativos e sobre as mudanças no jeito de fazer pesquisa com/sobre crianças. 

Como chaves para leitura e discussão partimos do mundo pré-simbólico do selvagem às liberdades, constrangimentos e limites na educação e na pesquisa com criança. Da necessidade da comunicação e suas múltiplas linguagens à condição de aprender a ouvir as crianças e seus enigmas, discutimos a importância e os diferentes tipos de relatos sobre e de crianças na pesquisa. Relatos de crianças, jovens ou adultos que envolvem depoimentos, representações, memórias, identidades, imagens, desenhos e produções diversas, infantis ou não, que também expressam diferentes significados atribuídos à participação das crianças na pesquisa, conforme as escolhas metodológicas. 

Assim, a pesquisa com, sobre e para crianças também revela a dificuldade de se deixar captar pelas imagens da infância e pela inversão de olhar. Para tal há que esclarecer os princípios, a metodologia e os instrumentos da investigação. Princípios éticos e estéticos que se manifestam na questão do respeito, da identidade, da autorização, da autoria, e da autenticidade do registro. A questão do método, que tanto revela a concepção de conhecimento, sujeito e infância norteando a investigação, como o papel e o lugar da criança na pesquisa, o que leva a perguntar: preservar ou não a sua identidade? Quando o uso de imagens é necessário? Como deve ser feita a transcrição das falas e da polifonia de vozes das crianças? O que significa dar retorno ou devolutiva aos sujeitos de pesquisa? Quando escolher uma pesquisa etnográfica, de recepção, de representação, de análise de discursos e produções das crianças? Como os instrumentos de pesquisa (a observação, o questionário, a entrevista, o grupo focal) permitem captar os enigmas das crianças e burlar as armadilhas e surpresas que elas preparam ao pesquisador?

Enfim, tal como o garoto selvagem ao final do filme, que não era mais selvagem mas também ainda não era totalmente humano, parecia que o olhar das estudantes no final da aula também não era mais apenas de estudantes, pois a dimensão “pesquisador” no papel de estudante torna o olhar diferente, um olhar que não é mais apenas de estudante mas também ainda não é de aprendiz de pesquisador...

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