terça-feira, 30 de outubro de 2012

Cultura digital e suas marcas em práticas e eventos



Entre os meses de setembro e outubro de 2012 participei de três eventos no campo da educação e comunicação com a temática da cultura digital exercendo funções de curadoria, organização, palestrante e comentarista. Compartilho algumas impressões.

No Educasul, realizado no CentroSul de Florianópolis, no dia 3/9/2012, o prof. James Paul Gee (Arizona State University), durante a conferência sobre Educação na Era Digital, ao chamar a atenção para a pergunta: Por que as crianças aprendem melhor fora da escola? recorre a Paulo Freire para argumentar que ensinamos de maneira errada ou ruim. Imagens, ações, experiências estão colocados no mundo antes da palavra e assim, as crianças começam a aprender com o mundo e ler primeiro o mundo. Ao oferecer esse mundo às crianças, Gee ficou interessado em pesquisar os videogames porque segundo ele, são ferramentas que colocam as crianças no mundo. Para ele, o videogame pode atuar como um portal em que as crianças interagem com imagens, constroem suas vivências e experiências, enfrentam a solução de problemas e assim elas vão aprendendo num percurso que vai das experiências do mundo às palavras. Sendo projetado para mudar conforme os jogadores vêem o mundo, os videogames propiciam novas possibilidades de ver e resolver os problemas, e não seria isso que as escolas deveriam fazer? Pergunta ele.

Nessa mesma linha de raciocínio, a professora Elisabeth Hayes (Arizona State University) destaca o videogame como apoio à aprendizagem nesse percurso da leitura para escrita no mundo digital, visto que hoje é necessário saber ler, interpretar e atuar no mundo digital também. Afinal, pergunta ela: o que as crianças estão fazendo com as tecnologias digitais? De que forma estão usando? Estão entendendo essa ferramenta para além do que foi programado, como o videogame? Estão usando também para certas formas de ativismo e  militância social? Elas têm essas competências? De que forma as crianças estão sendo empoderadas para tal? E responde dizendo que a tecnologia digital pode estar reforçando  as desigualdades, e aqui também traz o olhar de Paulo Freire para pensarmos que independente da renda e condição social, as crianças aprendem mais sobre as tecnologias digitais fora da escola.

No IV Seminário de Pesquisa em Mídia-Educação e I Seminário UCABASC, realizado no Centro de Eventos da UFSC nos dias 10 e 11/09/2012,  a Profa Maria Florencia Ripani, do Ministério de Educação da Cidade de Buenos Aires também destacou os paradigmas da cultura digital e as mudanças  nos processos culturais  mencionando  o dialogismo de Paulo Freire a partir da necessidade de diálogo e mediação entre homem-mundo-tecnologias. Recuperando a importância da multimodalidade na produção de sentidos, Florencia destacou a experiência do Plan Sarmiento como um Plano Integral de Educação Digital. Aliás, mais do que integrar as escolas portenhas à cultura digital, o objetivo é inovar as escolas, e para tal o Plano desenvolveu uma implementação pedagógica junto com a implementação tecnológica. As estratégias de inovação parecem ter começado com formação e acompanhamento de professores, e envolve grupos de formadores e multiplicadores, conselhos consultivos, redes de supervisores, oficinas, intercâmbio de experiências e produções colaborativas, festival digital, participação das famílias e muitos outras ações de forma a integrar o trabalho, produzir e compartilhar conteúdos e experiências.  Com isso, aos poucos parecem estar mudando a aprendizagem e a escola.

Após discutir algumas questões sobre o Plan Sarmiento com o PROUCA,  Nelson Pretto,  Maria Helena Bonilla,  Elisa Quartiero e eu  apresentamos aspectos de uma pesquisa em desenvolvimento sobre Gestão e Práticas Pedagógicas no âmbito do PROUCA em BA e SC. Considerando que as políticas públicas de inserção das tecnologias da escola na perspectiva de uma inclusão digital, social econômica e cultural envolvem uma complexidade que também diz respeito à discussão sobre o marco civil da internet, os direitos autorais, o software livre, etc. , só iremos enfrentar  tais questões “se criarmos redes de relações”, diz Pretto. Ao mesmo tempo, o desafio de pensar além do cotidiano da sala de aula só vai repercutir em formação cidadã se tal processo estiver ancorado em uma apropriação significativa dos conhecimentos na perspectiva de um pertencimento instrumental, social e cultural. Para isso, pensar a especificidade dos processos de aprendizagem no contexto da cultura digital só tem sentido se implicar em práticas pedagógicas e sociais transformadoras. E apesar de encontrarmos certos indícios de algumas experiências autorais, colaborativas e cidadãs, parece que ainda estamos longe de construir outras perspectivas e ultrapassar certas fronteiras da inclusão digital por diversos motivos...

E por falar em fronteiras, o prof. Marcelo Buzzato  traz essa discussão do ponto de vista da linguagem, tecnologia e sociedade para pensar o letramento e as redes digitais e sociais. Ao destacar a cultura digital e a escola, enfatiza valores, tecnologias e métodos que transitam no conceito de inovação destacando o remix autoral, a mistura popular/massa, digital/não digital, homem/máquina e outros que Gilka Girardello  costura com autoria narrativa infantil e imaginário midiático. Para ela, na dimensão dialógica do discurso narrativo a autoria se parece com o jogo do contar, e traz o exemplo da fanfiction.

Diante de tantas questões que instigaram o nosso pensar, ao discutir os direitos autorais e sua relação com a educação e a cultura digital, o prof. Marcos Wachowickz  enfatiza que nossa legislação atual é das mais restritivas do planeta e que os direitos autorais protegem mais o intermediário que o autor. E como fica essa questão no contexto das novas mídias, novos cursos e novas práticas de pesquisa e autorias na universidade? pergunta ele. E responde dizendo que estamos diante do desafio de buscar novas formas de pensar as formas produzidas não proprietárias, de construir e produzir conhecimentos que realmente sejam retribuídos à sociedade, diz ele. A dificuldade é mudar a cultura da universidade, e toda mudança de paradigma parece ter sido sempre complicada.

Da ilha de SC para Porto de Galinhas, a 35ª Reunião Anual da ANPED foi a consolidação dessas e outras inquietações. O que nós estamos fazendo com as redes e o que as redes estão fazendo com nós? pergunta a profa. Lucia Santaella no início de sua fala sobre Construções intersubjetivas nas redes digitais, encomendada pelo GT Educação e Comunicação. Entre passagens sobre a idéia da aprendizagem ubíqua, do poder emergente das redes, da subjetividade humana e sua polifonia na subjetividade coletiva, das identidades múltiplas, da cultura participativa e do potencial para a educação, chamou a atenção o destaque para o valor do erro com respaldo em Oswald de Andrade, para quem errar significa a possibilidade de corrigir depois. O interesse é no ser humano, no que está acontecendo com ele e nos processos de ensino-aprendizagem pós-revolução digital, diz Santaella, destacando a necessidade de reinventar cotidianamente, pois vivemos um tempo em que não há mais tempo para nostalgia.

E sem nostalgia, mas com saudades dos tantos encontros que tais eventos propiciam, a singela beleza de ver o reconhecimento a tantos mestres que fizeram e fazem a história da educação em nosso país serem premiados com o Troféu Paulo Freire  Certeza de que esses eventos são momentos que não apenas nos ensinam, mas deixam marcas ...  



quarta-feira, 17 de outubro de 2012

Sobre representações de infâncias no cinema



Em junho de 2012 tive o prazer de participar da banca examinadora da tese  Representações da infância no cinema: ficção e realidade, de Francisca Rodrigues Lopes, defendida no Curso de Doutorado em Comunicação e Semiótica, PUC/SP, sob orientação da Profa. Dra. Leda Tenório  da Motta. E ao encaminhar algumas discussões no Núcleo de Aperfeiçoamento e Diversificação de Estudos, NADE, sobre Cinema, Infância e Educação, em uma turma da Pedagogia da UFSC, lembrei desse trabalho e sua temática.  

Cruzando as fronteiras entre infância e cinema,  Francisca tece suas reflexões teóricas sobre representações da infância no cinema  de uma forma inteligente e original, em que a abordagem dos estudos da infância a partir da filosofia de  Comenius, Montaigne, Rosseau coloca-se ao lado dos estudos do cinema (Metz, Aumont) da semiótica (Pierce, Greimas), transitando pela psicanálise e por outros cenários da cultura.

O corpus analisado envolve os 5 filmes considerados renomados (diretor e crítica) e clássicos com narrativa do tipo realístico (drama e melodrama) que foram selecionados para análise e descrição: Cinema Paradiso, (Giuseppe Tornatore, Itália , 1988), As cinzas de Angela (Alan Parker, EUA, 1999), O brinquedo proibido(René Clement, França, 1952), A vida é bela(Roberto Benigni, 1997) e  O balão branco (Jafar Panahi, Irã, 1995). O diálogo entre cinema, infância e representações vai se construindo com densidade sem perder a leveza, revelando as sensibilidades que o cinema pode criar..

A infância escolhida na maioria dos filmes não é a da fantasia e tal como instiga o Prof. José Paulo Fiks, poderíamos nos perguntar o que esses filmes representam no campo da pedagogia.

Aliás, será que os filmes hoje representam a criança?  Muitos trazem uma infância que não é mais infantil, e se por outro lado, o cinema de certo modo se infantilizou, a noção de agência da criança foi se modificando. E talvez o cinema tenha uma nova representação de infância ou uma nova fantasia... Mas se a infância está mudando, até que ponto o cinema consegue representar as tantas condições de infâncias que vivem as crianças hoje?

Entre distração, contemplação e reflexão, Benjamin diz que o valor do culto e exposição da obra de arte na era da reprodutibilidade técnica se desloca, mas não desaparece. Assim, a relação do cinema com a realidade pode ser considerada a mesma que a do cinema com a criança, e apesar de o cinema também incluir uma visão idealizada, o modo como representamos o mundo também é a realidade.

O cinema e a infância criam demandas, vontade de ver, curiosidade que nasce e satisfaz. O cinema satisfaz, mas satisfaz por que, pergunta o Prof. Oscar Cesarotto, que responde pelo viés da  psicanálise: porque aponta para o coletivo, sonhos e fantasias, produções do inconsciente e histórias. A narrativa do cinema cria histórias como uma maquinaria de sentido. Ou seja, o cinema satisfaz porque as histórias que ele conta se referem a algo em torno do aqui e agora. Um signo que desperta algo.

E entre tantos despertares, qual seria o limite do representável? Há algo que deve ser preservado das crianças? O que se pode ou não mostrar dessas representações de infância e criança no cinema? 

Imagem: cena do filme O brinquedo proibido (René Clement, França, 1952)